21.6.05

Blade

Acordei vomitando lâminas. Lâminas saindo descontroladamente, num ritmo frenético como abelhas saindo da colméia para defender o reino da puta da abelha rainha. Lâminas pela minha boca, rasgando minha língua, quebrando meus dentes, saindo pelo nariz. Fiquei imaginando o que aconteceria se eu dormisse de barriga para cima. Provavelmente estaria morto. Sufocado pelas lâminas. Por que imaginamos algo pior quando acontece algo de ruim conosco? Isso não alivia a dor, não voltamos no tempo com uma sentença estúpida cuspida por um idiota qualquer. Poderia ter sido pior? Quem vai saber? A dimensão que vivo um raio cai uma vez no mesmo lugar.
De qualquer maneira... Levantei cuspindo sangue, pedaços de dentes, olhos vermelhos calor, pensando, enquanto a dor atormentava meu raciocínio, por que não morri de uma vez? Morrer é tão fácil. A morte, é minúsculo mesmo, não passa de um cão. Um cão sarnento com catarata nos olhos. Nada disso de anjo. mulher. esqueleto ambulante com uma foice na mão. brad pitt. Não senhor. Essa é a morte que venda, a morte corporativa. Se lhe faz sentir melhor que a morte tenha uma aparência fantástica, imagine que Stephen Hawkins é a morte. Quer algo mais fantástico? Que tal uma cadeira, então?
Não lembro mais qual foi o primeiro pensamento que tive quando acordei, ou o sonho que tive enquanto dormia. Não. Espera. Lembrei.
Estava no meio de um depósito de lixo procurando fotos da minha esposa. De repente surge essa mulher loira, de vinte e tantos, feia, mas não horrível. A mulher reclama a mim, diz que eu sou seu marido, entretanto não acredito nela. Lembro da silhueta de minha esposa e não era nada como ela. Mas como havia acabado naquele depósito de restos de frivolidades humanas? De certo algo de errado estava dançando na minha cabeça. Apostei em sua palavra.
Caminhei por instantes com a moça, seu rosto não lhe vendia seus pensamentos, era uma pessoa agradável até onde fomos. A mulher, então, resolveu que estava com muitas saudades e que deveria selar nosso reencontro com um beijo. Quando chego mais próximo de seu rosto feio percebo que milhares de pequenos vermes passeiam por seu semblante, uns até, saem de sua boca cheia de dentes tortos ou vermes, já nem sei direito.
Isso me aterroriza até os ossos e o choque me traz de volta a razão. Lembrei de onde conhecia a moça e por que ela me era tão repugnante. Era a esposa de um velho amigo, cujo não ouvia falar haviam mais de 30 anos. Era um soldado, já reformado, medíocre, porém leal. Não podia trair sua memória, mesmo sem vê-lo, era meu dever preservar sua honra.
Dois meses depois havia casado com a moça, ela me contou que ele a abandonou e que hoje provavelmente estaria morto. Pelos próximos três meses vive com essa mulher feia como marido e mulher. deus foi testemunha. ele foi.
No final do terceiro mês, estava adaptado a nova vida, a moça feia gentil e aos outros que moravam naquela cidade imunda e perdida pelo tempo e renegada por qualquer um que tivesse razão. A vida rodava em torno daquele depósito e da venda das coisas "aproveitáveis" que se tirava de lá. A mim isso nunca fez sentido. Mas o cotidiano nos embriaga, nos rouba o sentido e nos faz escravos de nós mesmos.
Aprendi o ofício de trazer o que presta do que não presta. Ainda me sentia sujo, ainda via vermes saindo da boca daquela mulher. Tinha alucinações de que ela teria um filho meu e que ele nasceria morto, devorado pelos vermes de suas entranhas.
Vivi tempos de agonia entre ela e seus cães sarnentos que fediam pior do que aquele depósito nos dias tórridos de verão. Meus olhos lacrimejavam com sua entrada e as pessoas do lugar não viam nada de estranho naqueles bichos. Uma noite acordei vomitando com o odor daqueles animais. Foi algo que nunca me acostumei.
Cinco meses depois um estranho bate a nossa porta na madrugada, bate com tanta força que eu achei que a casa iria cair. Fui atender. Para meu espanto era meu velho amigo. O pobre homem parecia faminto e calejado pelo tempo, trazia em seu ombro um cão sarnento como os que sua ex-esposa, agora minha, andava para cima e para toso os lados. Sugeri que entrasse e tomasse assento para poder servi-lhe algo. Preparei qualquer coisa, imaginei que com a fome que tinha comeria qualquer coisa. O homem não quis, parecia assustado e até o instante não havia falado meia palavra. Comecei a ficar agoniado com a situação e um tanto receoso, pois lhe devia algumas explicações que o mesmo não reclamava. Resolvi unir me a ele e sentei na outra ponta da mesa.
Ficamos assim por horas.
Resolvi lhe contar o que havia acontecido, porque estava ali, quando cheguei, todas as circunstâncias até aquele evento, palavra por palavra, sem omitir um suspiro, cada conversa seria retratada. Descobri nesse momento que não tinha voz. Pulei da cadeira onde estava e tentava gesticular, precisava entender o que estava acontecendo, sentia um mau estar terrível, sentia um calor insano, algo definitivamente queimava dentro de mim. Senti que ia vomitar, algo estava muito errado, será que fui envenenado, o que estava acontencendo? O vômito veio, não consegui segurar, nem queria, vomitei uma boa quantidade de sangue, dei três golfadas, na primeira uma bola de sangue coagulado caiu no chão e espatifou-se, na segunda ouvi milhares de sons metálicos gritarem ao bater no chão, na terceira um longo e rápido jorro de vômito espalhou-se pela mesa, cadeira e mesmo no meu velho amigo. Demorei para me recompor, quase desfaleci, cai de joelhos, estava completamente grogue. Antes que pudesse entender o que estava ocorrendo senti algo me esgangando, havia algo ainda na minha garganta que o vômito não liberou. Enfiei minha mão o mais que pude e retirei o corpo que obstruia minha respiração. Era um anel. De fato, os sons metálicos que ouvi bater no chão eram milhares de anéis, anéis desses de casamento. Não estava acreditando naquilo, mexi no meio daquela sujeira toda para acreditar que aquilo veio mesmo de dentro de mim.
Olhei para meu velho amigo e ele chorava, na sua face não havia expressão nenhuma, somente os olhos vermelhos de tanta lágrima a correr e as lágrimas que rolavam pelo seu rosto viravam pedras antes de tocar o chão.
Ele levantou, foi até a porta, ainda aos prantos, olhou para o céu e saiu. Ele deixou o cão no seu lugar e as pedras se tornaram balas. Resolvi sentar. O relógio ia tocar a qualquer instante.

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